6 de agosto de 2010

Analisando #01: Cafuas, Guetos e Santuários

Ultimamente Jogos de Armar (2000) está me tomando vorazmente. Impossível não se surpreender com tamanha força artística, sendo para mim o álbum mais corajoso e criativo de Tom Zé. Em praticamente todas as letras do compositor é possível notar uma preocupação do artista em explorar frequentemente a carga sígnica de interessantes jogos de palavras e construções estéticas que, através da Semiótica, revelam em cada verso um novo ângulo da cultura brasileira.

Analisando a letra Cafuas, Guetos e Santuários, do álbum Jogos de Armar (2000), notei algumas questões interessantes que gostaria de compartilhar com vocês.

O modo com o qual Tom Zé trabalha essa melodia, em uma frequência rítmica interessante talvez seja essa a primeira observação que faz-se dessa música, por ser de fato a mais contundente, perceptível à primeira instância. A sensação de movimento gerado nos remete ao som de uma locomotiva à vapor, o leitmotiv que une semioticamente a letra à sensação de um trabalho maquinário.

Podemos ainda ousar dizer que as três palavras principais da música que entitulam a obra - cafuas, guetos e santuários - funcionam muito bem como um jogo de rodas que impulsiona tal locomotiva, metáfora que o compositor utiliza para referir-se à cidade de São Paulo, construindo a imagem de esta possuiria um ritmo incessante, semelhante ao de uma máquina. Sob uma segunda ótica, podemos interpretar tal ritmo embasado no ato de alguém que caminha pelas ruas de São Paulo. (Quem tem a oportunidade de conhecer um pouco da obra de Tom Zé sabe de sua ligação com essa metrópole, registrada em outras obras do compositor, como São São Paulo e Augusta, Angélica e Consolação).

O trecho "São Paulo, São Paulo" cantado em coro, remete-nos à rápida associação deste tom (duro, seco) à fumaça que é liberada pela locomotiva.
(De um modo poético, ousaria dizer que este pequeno trecho explora culturamente o que é esta cidade, de modo que os habitantes de São Paulo estariam dissipando-se no ar, esvaindo-se em essência aos poucos, "gastos" pelo pesado e intenso movimento da "locomotiva", que continua a trabalhar de modo automático, sem cessar). Isso, aliás, fica mais evidente com as frases que precedem a dura expressão sonora "São Paulo", que soam "macias", de modo diametralmente oposto ao modo como é proferido o nome da cidade.

Desse modo, entendemos mais claramente que o emprego das expressões sinônimas cafuas (esconderijos) e guetos têm o objetivo de refletir o sentimento de solidão no qual encontra-se o cidadão habitante de São Paulo, que de algum modo possa encontrar conforto na mística da religião (o termo santuário empregado na música).




>> Clique aqui para ouvir a música.

Cafuas, Guetos e Santuários
(Composição: Tom Zé)

Tum tum tum cafuas
Tum tum tum guetos
Tum tum santuários
São Paulo

Coro: São Paulo, São Paulo
Em algum lugar da tua violência és domingo
Coro: Domingo, domingo
Em algum lugar do teu domingo
Tens um útero de idéias
Coro: Idéias, idéias
Cafuas, guetos e santuários
Vêm hoje aqui na periferia
Procurar o ouro das cabeças
Coro: Cabeças, cabeças
Tum tum tum cafuas
Tum tum tum guetos
Tum tum

4 de agosto de 2010

Um 'Oh' e um 'Ah'

Ouvir Tom Zé... É como se a vida desse uma pausa. Um jorrar de lucidez em cada jogo de palavra, em letras sempre contundentes, que possuem uma dureza maleável, misto de inocência e maturidade, alegria e solidão.

Chegou a mim ainda pequena, ocupando a trilha de abertura de um programa da TV Cultura, com a música Politicar, que seria uma espécie de "hino" de sua poética, talvez o reflexo mais cristalino de sua sempre ácida e inteligente ideologia como artista. Àqueles tempos, ainda vivia minha meninice, que já beirava a pré-adolescência – isso em meados dos anos 1990, época em que as crianças ainda eram crianças, pasmem vocês.

Ela, a letra travessa, atravessou o horizonte, encontrando-me já maior de idade. Ele, o "atirador das ideias", instigou-me à reflexão. Era tarde e de nada adiantaria oferecer resistência: fui tomada por um amor platônico (não o "platônico" de acepção vulgar, mas aquele abstraído da conotação mundana. Falo do amor fundamentado no sentido da expressão de origem, a virtude).

Resolvi, então, criar este blog, O Tom do Zé, para expor minhas observações e estudos através da análise das letras de Tom Zé, compartilhando com vocês essa bela e saborosa fatia – felizmente salva – do bolo quase totalmente mofado que configura-se atualmente a música brasileira, e que surpreende-me por seu "frescor" a cada vez que mais um pedaço ouso provar.


"Criar é matar a morte." (Romain Rolland)