17 de novembro de 2010

Analisando #02: Perisséia

"Perisséia" ou, porquê não, a Odisséia de Peri. Primogênito brasileiro, o habitante das matas e da literatura transpõe-se sobre as páginas de "O Guarani", de José de Alencar, para sobreviver nas regiões periféricas do Brasil. Talvez essa seja essa a analogia primária que estabelecemos com o neologismo que entitula a faixa 12 do álbum Jogos de Armar (2000), de Tom Zé.

Podemos notar na letra "Perisséia" um esboço poético acerca do contexto histórico-social brasileiro construído desde o princípio da colonização. É interessante notar a estrutura sob a qual nos são apresentados contrapontos e dicotomias que formaram, ao longo dos séculos, a cultura identitária denominada "brasileira".


(foto: André Conti)

O primeiro trecho que gostaria de destacar é a retórica na introdução da letra, que não poderia ter sido melhor inserida senão na abertura da música, ratificando o tom inicialmente empolado, quase agressivo: "Sabe com quem tá falando? / Eu sou amigo do rei... / Que importa o nome que eu tenho? / Que importa aquilo que eu sou?". Embora o primeiro contato com este trecho possa aludir à elite burguesa brasileira e o juízo de valor que é concebido de acordo com o poderio financeiro, é possível que a intenção do compositor seja justamente inverter o pujante discurso, tornando interlocutor o cidadão brasileiro das regiões periféricas do país. Desse modo, sob uma visão romântica e quase ingênua, todos os indivíduos nascidos e criados sob o berço Brasil estariam assegurados em sua consistência étnica das intempéries sociais, que lhes propiciariam gozar de seus plenos direitos como cidadãos. (É possível também, sob um segundo olhar, atribuir tal introdução como uma referência poética aos versos da obra "Vou-me embora pra Pasárgada", de Manuel Bandeira: "Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei.")

Com base na análise de trechos específicos da música, notamos que o tempo possui um papel interessante na canção, notadamente dividida em dois momentos: o primeiro, pela vida natural indígena e o segundo, com a chegada dos colonizadores em terras brasileiras. Ainda na tentativa de expressar essa dualidade espaciotemporal da história do Brasil, talvez as onomatopéias que tenhamos como base musical queiram fazer referência ao canto indígena. Além disso, o imagético brasileiro é construído a partir da citação de importantes ícones da história (Peri¹, Zumbi² e Galdino³), que refletem o imagético do primeiro habitante do Brasil e que, de uma certa forma, engendram a teia da aculturação das raízes culturais brasileiras a partir da colonização européia. Desse modo, vemos que, apesar da vasta extensão territorial brasileira que engloba em sua área alguns Portugais, em comparação com o modelo sócio-cultural europeu, ainda ensaia seus primeiros passos. Podemos compreender melhor nos seguintes trechos: "...um gigante-menino / um navio sem destino / no ano dois mil" e "Se eu pudesse atrasaria / Este relógio dois mil / Pra rezar na primeira missa / Pelo futuro do Brasil." Este último trecho é uma referência da peça teatral de Capinan, compositor parceiro de Tom Zé em Perisséia: "A história se passa num desfile de escola de samba, que narra a histórica viagem de Pedro Álvares Cabral, desde o Tejo em Lisboa até o Monte Pascoal, com a descoberta do Brasil, em 21 de abril de 1500. Um menino de rua, Brasil, deseja participar do desfile, representando Peri, para fazer par romântico da ópera Il Guarani com Ceci. O garoto rouba o ponteiro do relógio 2000, que marca a contagem regressiva das comemorações do evento histórico, provocando uma viagem descontínua no tempo para diversos momentos da história brasileira e do mundo. Brasil, no entanto, encontra o passado e o deseja transformar, rezando e pedindo pelo futuro do País na Primeira Missa, celebrada na Coroa Vermelha: "Se eu pudesse atrasaria / Este relógio dois mil / Pra rezar na primeira missa / Pelo futuro do Brasil." (fonte: Revista Agulha)

>> Clique aqui para ouvir a música.

Perisséia
(Composição: Tom Zé e Capinan)

Sabe com quem tá falando?
Eu sou amigo do rei...
Que importa o nome que eu tenho
Que importa aquilo que eu sou
Se eu tenho um sonho impossível
Pra mim o tempo parou
Meu nom, meu nome é peri
Meu nom, meu nome é zumbi
Meu nom, meu nome é galdino
Meu nome é brasil
Um gigante-menino
Um navio sem destino
No ano dois mil

Coro

Se eu pudesse atrasaria
Este relógio dois mil
Pra rezar na primeira missa
Pelo futuro do brasil
Acalanto
Inhem inhem inhem
Inhem inhem inhem
Nhem ... nhem nhem
Nhem nhem
Coro

Iê peri iê peri iê camará
Iê peri camará
Peri brasil
Peri

E eu, o que sou?
E eu, o que sei?
Macunaíma, sou eu?
Tiradentes, sou eu?
Sou eu um poeta
Sou eu um pião?
Quantos anos eu tenho
Quantos anos terei?
Eu que vivo sem, jamais saberei
Ó meu pai, não me abandone,
Minha mãe, como é meu nome
Este mundo tem lei?
Este mundo tem rei?

Coro

Se eu pudesse atrasaria ...

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¹Peri: Ceci e Peri são os personagens principais do romance "O Guarani", do escritor José de Alencar, publicado em 1857. (fonte: Wikipedia)

²Zumbi dos Palmares: Zumbi nasceu em Palmares, Alagoas, livre, no ano de 1655, mas foi capturado e entregue a um missionário português quando tinha aproximadamente seis anos. Batizado "Francisco", Zumbi recebeu os sacranentos, aprendeu português e latim, e ajudava diariamente na celebração da missa. Apesar destas tentativas de aculturá-lo, Zumbi escapou em 1670 e, com quinze anos, retornou ao seu local de origem. Zumbi se tornou conhecido pela sua destreza e astúcia na luta e já era um estrategista militar respeitável quando chegou aos vinte e poucos anos.
(fonte: Wikipedia)

³Galdino Jesus dos Santos: Galdino Jesus dos Santos, também conhecido como "índio Galdino", foi uma liderança do povo indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe que foi queimado vivo enquanto dormia num abrigo de ônibus, em Brasília, em 20 de abril de 1997, após participar de manifestações pelo Dia do Índio, num crime que chocou o Brasil. O crime foi praticado por cinco jovens de classe média-alta daquela cidade. (fonte: Wikipedia)

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